Extraordinárias

17/11/2017

Por Djaimilia Pereira de Almeida

Dandara ilustrada por Lole

Não conhecia a maior parte das mulheres extraordinárias evocadas em Extraordinárias: Mulheres que revolucionaram o Brasil, de Duda Porto de Souza e Aryane Cararo. Mas não foi com vergonha que me apercebi da minha ignorância, que apenas confirma como o precioso trabalho de comemoração do seu legado se justifica neste momento. Li o livro, claro, não como brasileira, mas como uma mulher entre mulheres, e como uma falante da mesma língua. Imaginei-me como cada uma delas, no que têm de semelhante a tantas outras que comigo se cruzaram, até comigo mesma. Imaginei que talvez dentro de cada uma, perpassando a sua circunstância, estivessem aflições comuns: o mesmo desejo pela liberdade e um sentido da dignidade dos seus anseios pelos quais, em muitos casos, sacrificaram a vida.

Talvez por isso me tenha tocado especialmente ao ler sobre a guerreira Dandara, sobre Dona Ivone Lara ou sobre Felipa de Souza, entre tantas outras, a maneira como o meu desconhecimento me coloca em falta para com a memória das mulheres extraordinárias dos meus dois países, Portugal e Angola, que também largamente desconheço. Para não falar de tudo o que não sei sobre aquelas de que nenhum de nós se lembrará e que foram no seu tempo as mães, as irmãs, as avós, as amigas, anónimas lutadoras que fizeram o nosso passado. Essa parece-me ser a maior conquista deste livro: a de nos fazer lembrar e celebrar não apenas as mulheres extraordinárias que revolucionaram o nosso mundo e os nossos países, mas aquelas que revolucionaram e revolucionam apenas uma casa, apenas um quarto, um ou dois corações. Ele recorda-nos do que nos passa ao lado não apenas na História que já está escrita, mas naquela que é feita diariamente e que podemos ajudar a escrever, com uma atenção amiga para com as mulheres do nosso tempo: as nossas irmãs, mães, amigas, avós, vizinhas.

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Conheça uma das personagens de Extraordinárias: 

DANDARA

Uma guerreira negra que aprendeu a fabricar espadas e a lutar com elas; uma capoeirista forte e corajosa que planejava ações de combate e liderava seus companheiros na luta pela liberdade — assim sobrevive em relatos e lendas populares a história de Dandara, rainha do Quilombo dos Palmares e companheira de Zumbi. Não se sabe ao certo onde ela nasceu e como chegou ao maior e mais duradouro quilombo implantado nas Américas. Independente da falta de registros oficiais de sua existência, uma coisa é certa: quando se fala em Dandara, se coloca em questão o silêncio e o apagamento imposto às mulheres negras no Brasil.

Dandara viveu na região da serra da Barriga, atualmente pertencente ao município de União dos Palmares (AL). Ali assumiu a missão de proteger
o Quilombo dos Palmares, fundado por volta do final do século XVI por escravos que haviam fugido dos engenhos de açúcar nas redondezas. Segundo as narrativas, ela não se contentava apenas com a resistência ao regime colonial português e aos ataques holandeses, propondo estratégias para ampliar o poder de Palmares e extinguir o trabalho escravo nas fazendas.

Quando em 1678 o primeiro grande líder da comunidade, Ganga Zumba, tio de Zumbi, assinou um acordo de paz com o governo da então província de Pernambuco, Dandara se posicionou fortemente contra. O documento garantia a liberdade dos palmarinos e permitia que realizassem comércio, mas os obrigava a entregar qualquer escravo que aparecesse ali em busca de abrigo. Diversas fontes dizem que a influência da companheira foi fundamental para o rompimento de Zumbi com o tio e sua ascensão à liderança do quilombo. Ganga Zumba teria pagado com a vida por esse tratado de “paz”, tendo sido assassinado por quilombolas contrários ao acordo com os portugueses.

A tradição oral, reforçada por alguns historiadores, conta que Dandara teria morrido no dia em que as forças militares derrotaram a última aldeia de Palmares, 6 de fevereiro de 1694. Seus três filhos com Zumbi — Harmódio, Aristogíton e Motumbo — teriam sido mortos em combate, e ela teria se jogado de um penhasco para não ser capturada. Zumbi conseguiu fugir com um grupo pequeno para tentar reconstruir Palmares.

A trajetória de Dandara em Palmares é retratada em detalhes no livro As lendas de Dandara, da escritora cearense Jarid Arraes. Mesclando pesquisa historiográfica, ficção e memória popular, ela narra como a guerreira conseguiu desempenhar papéis geralmente destinados aos homens,
arriscando-se em missões de resgate de escravos em fazendas e em um porto de navios negreiros. Para Jarid, o racismo e o machismo da sociedade fazem com que heroínas como Dandara sejam quase completamente apagadas da história brasileira. Como conta na introdução do livro, ela só conheceu sua história quando começou a militar como feminista negra. Em uma entrevista ao Diário de Pernambuco, publicada em 2015, Jarid criticou a escassez de narrativas desse tipo na mídia e nas escolas, e explicou sua decisão de publicar o livro:

Decidi escrever sobre Dandara quando publiquei um texto falando dela […], em novembro de 2014, e recebi comentários que afirmavam que ela não era nada além de uma lenda. Pensei: se ela é uma lenda, então preciso escrever essas lendas, pois nem isso temos a seu respeito.

Assim, as várias facetas de Dandara continuam vivas. Sua força reverbera entre as novas gerações, ligada à história da diáspora africana e das mulheres negras no Brasil.

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EXTRAORDINÁRIAS

Sinopse: Dandara foi uma guerreira negra fundamental para o Quilombo dos Palmares. Bertha Lutz foi a maior representante do movimento sufragista no Brasil. Maria da Penha ficou paraplégica e por pouco não perdeu a vida, mas sua luta resultou na principal lei contra a violência doméstica do país. Essas e muitas outras brasileiras impactaram a nossa história e, indiretamente, a nossa vida, mas raramente aparecem nos livros. Este volume, resultado de uma extensa pesquisa, chega para trazer o reconhecimento que elas merecem. Aqui, você vai encontrar perfis de revolucionárias de etnias e regiões variadas, que viveram desde o século XVI até a atualidade, e conhecer os retratos de cada uma delas, feitos por artistas brasileiras. O que todas essas mulheres têm em comum? A força extraordinária para lutar por seus ideais e transformar o Brasil.

Extraordinárias chega hoje às livrarias. 

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Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Luanda, em 1982, e vive em Lisboa. É autora de Esse cabelo (Teorema, 2015) e Ajudar a cair (FFMS, 2017). 

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